Perspectiva sobre o pedinte de São Martinho (1ª parte)
»»»»» Micropormenor da tela São Martinho e o pobre (Bartolomeo Vivarini, 1491).
»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»»» mirad la miséria de mí, pecador.
Pés e mãos
»»»»» Em apóstrofe e prosopopeia, ou seja, dirigindo-se-lhes como seres pensantes autónomos, o Pobre do Auto de São Martinho (Gil Vicente, 1504) interpela as pernas e as mãos: as pernas que mal podem levá-lo pelo caminho, as mãos que têm de agarrar o bordão, utensílio necessário para que o corpo se desloque no espaço:
Oh, piernas, llevadme un passo siquera;
manos, pegaos n’aqueste bordón,
(“Oh, pernas, levai-me um passo ao menos;
mãos, fincai-vos neste bordão,”)
»»»»» E, nesse movimento que realizam pernas tolhidas e mãos ingentes, as dores que descansem de tanta passión, na fórmula castelhana, ou seja, tanto sofrimento (passio, em latim):
descansad, dolores de tanta passión;
(“descansai, dores de tanto sofrimento;”)
»»»»» Mais adiante, na segunda estrofe, interpela os cristãos; pede-lhes, num exibicionismo típico de pedinte, que olhem para ele,
mirad ora el triste que estoy lastimado
de pies y de manos por mi desventura;
(“olhai ora quão triste estou, lastimado
de pés e de mãos por minha desventura;”)
»»»»» e logo, na terceira estrofe, insiste em que olhem para a sua miseria:
mirad el tollido de pies y de manos;
mirad la miseria de mí, pecador.
(“olhai o tolhido de pés e de mãos;
olhai a miséria minha, pecador.”)
»»»»» É a só vez na qual ocorre o termo pecador no discurso do Pobre, sendo no entanto central na operacionalidade lógica do discurso: por ser pecador, ele está a ser sujeito a todos os males físicos que o atormentam. O corolário será que todos os males supervenientes do acidente, da doença e da velhice serão os castigos devidos ao pecador. Por muitos séculos este juízo (ou falta dele) foi um expoente de um tipo de “verdade” inerente à vida dos seres ditos humanos sobre o planeta dito terra, na insana deriva planetária do universo.
Chagas
»»»»» O Pobre sin ventura pede limosna (“esmola”) aos cristãos devotos, pede insistentemente ao longo do seu discurso; este é o termo que mais vezes ocorrerá. Pede por se encontrar enfraquecido e plagado, ou seja, coberto de chagas:
Devotos Cristianos, dad al sin ventura
limosna, que pide por verse plagado;
(“Devotos Cristãos, dai ao sem ventura
esmola, que pede por ver-se chagado;”)
»»»»» Pede esmola, exibindo as suas chagas (segunda estrofe):
mirad estas plagas que no sufren cura;
(“olhai estas chagas que não sofrem cura;”)
»»»»» Um pouco adiante (terceira estrofe), regressa à atitude exibicionista:
Mirad ora el triste con mucho dolor;
que ante de muerto me comen gusanos;
(“Olhai ora o triste com tanta dor;
que antes de morto me comem os vermes;”)
»»»»» Este último verso é um dos cumes de morbidez do Auto: os gusanos comem-lhe já o corpo antes de morto. E se em geral o Pobre se refere a si na terceira pessoa, ele é “o triste”, aqui assume escatologicamente a sua carne “me comem os vermes”.
[06.11.2017/10.11.2017]
»»»»» Pormenor central da tela São Martinho e o pobre (Bartolomeo Vivarini, 1491).
»»»»» Notas:
»»»»» 1. As imagens que acompanham este texto correspondem: a um micropormenor e a um pormenor da tela São Martinho e o pobre (Bartolomeo Vivarini, 1491).
»»»»» 2. Em projecto, a redacção de textos parcelares subsequentes, sob o mesmo título Perspectiva sobre o pedinte de São Martinho, incidindo sobre o delírio conceptual do Pobre, no discurso inicial da peça vicentina; este texto e os subsequentes constituirão o segundo painel, cujo primeiro é o já redigido e aqui editado, Perspectiva sobre São Martinho. Título geral para este duplo painel: Perspectivas sobre São Martinho e seu pedinte.
»»»»» 3. Insere-se em Adenda o texto original em castelhano do Auto de São Martinho, sobre cujas três primeiras estrofes incidiram as considerações acima textualizadas.
»»»»» ADENDA
»»»»» [Os versos em castelhano transcritos são retirados do Auto de São Martinho (Gil Vicente, 1504). Utiliza-se o volume I da Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, introdução e normalização do texto de Maria Leonor Carvalhão Buescu, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1984.]
António Sá
[06.11.2017/11.11.2017]
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