Re-lendo Clarice Lispector, trecho

Eu acho que quando não escrevo estou morta.

Afirmava Clarice Lispector numa entrevista de 1977 divulgada depois da sua morte, conforme a vontade da escritora, que por acaso ocorreu apenas alguns meses depois, no Dezembro do mesmo ano.

Nos últimos dias tenho andando em busca de informações sobre a Clarice e as suas obras, voltei a ver velhas entrevistas e a ler.

Facto que achei bastante curioso, a escritora afirmava nunca ter tomado a actividade do escrever como profissional, sempre preferiu continuar como amadora; escrever para ela não era trabalho, gostava de ter a liberdade de escrever sem restrições, alternando momentos de grande produção com momentos de relativa aridez, segundo a natureza das inspirações.

Não se trata de uma descoberta recente, eu li obras da Clarice há muitos anos, mas não conseguia entendê-la, gostava sim, mas não estava apaixonada. Talvez fosse o problema do português, de alguma dificuldade linguística, ou por causa de uma minha falta de maturidade literária, não sabia dizer com certeza. Sei só que quando voltei a abrir  as páginas escrita pela Clarice, e isto deu-se recentemente, achei tudo mudado. Fui literalmente capturara.

Resolvi começar novamente pelo início, voltando mesmo ao primeiro livro, pois queria fazer o percurso de novo, parecia-me justo.

O meu livro actualmente em leitura é Perto do Coração Selvagem, primeiro livro publicado pela Clarice. É a história intima da Joana, una espécie de monólogo interior que se desenrola através de vários acontecimentos, um  fluxo de consciência, uma procura constante em descobrir e encontrar a razão de ser da existência, desde a meninice até a idade adulta, passando pelas experiências dos lutos, dos namoros e da gravidez.

Tenho que fazer um grande esforço para acreditar que a escritora completou este trabalho quando estava com pouco mais de vinte anos de idade, que conseguiu atingir uma maturidade artística deste nível sem de facto ter vivido muito. A sua narrativa exala vida, têm uma intensidade penetrante, genial.

Joana, a protagonista, era demasiado pequenina quando a sua mãe morreu, mas a morte do pai sucedeu quando já podia entender o significado da despedida da vida. Não é da morte que é preciso ter medo, aquilo já é outro assunto, mas no trecho seguinte vê-se a Joana enquanto toma consciência da ausência da vida do pai.

Cobriu o rosto com as mãos esperando quase envergonhada, sentindo o calor de seu riso e da sua expiração ser novamente sorvido. A água corria pelos seus pés agora descalços, rosnando entre os seus dedos, escapulindo clara clara como um bicho transparente. Transparente e vivo… Tinha a vontade de bebê-lo, de mordê-lo devagar.Pegou-o com as mãos em concha. O pequeno lago quieto faiscava serenamente ao sol, amornava, escorregava, fugia. A areia chupava-o depressa-depressa, e continuava como se nunca tivesse conhecido a aguinha. Nela molhou o rosto, passou a língua pela palma vazia e salgada. O sal e o sol eram pequenas setas brilhantes que nasciam aqui e ali, picando-a, estirando a pele de seu rosto molhado. Sua felicidade aumentou, reuniu-se na garganta como um saco de ar. Mas agora era uma alegria séria, sem vontade de rir. Era uma alegria quase de chorar, meu Deus. Devagar veio vindo o pensamento. Sem medo, não cinzento e choroso como viera até agora, mas nu e calado embaixo do sol como a areia branca. Papai morreu. Papai morreu. Respirou vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo que o pai morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de peixe de água. O pai morrera como o mar era fundo! compreendeu de repente. O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu. Não estava abatida de chorar. E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa. Olhava os pés escuros e finos como galhos juntos da alvura quieta onde eles afundavam e de onde se erguiam ritmadamente, numa respiração. Andou, andou e não havia o que fazer: o pai morrera.

Deitou-se de bruços sobre a areia, as mãos resguardando o rosto, deixando apenas uma pequena fresta para o ar. Foi-se fazendo escuro escuro e aos poucos círculos e manchas vermelhas, bolas cheias e trêmulas surgiram, aumentando e diminuindo. Os grãos de areia picavam sua pele, nela se enterravam.

Mesmo de olhos fechados sentiu que na praia as ondas eram sugadas pelo mar rapidamente rapidamente, também de pálpebras cerradas. Depois voltavam de manso, a palma das mãos aberta,o corpo solto. Era bom ouvir o seu barulho. Eu sou uma pessoa. E muitas coisas iam se seguir. O quê?O que acontecesse contaria a si própria. Mesmo ninguém entenderia: ela pensava uma coisa e depois não sabia contar igual. Sobretudo nisso de pensar tudo era impossível.

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